Clube de "cidade-fantasma" faz história na Europa League


É inegável que a competição europeia interclubes de preferência da maioria seja a Uefa Champions League, com seus jogos de alto nível, seus renomados craques e toda a sua grife, mas também deve se levar em conta o carisma da Uefa Europa League, oportunidade para alguns gigantes adormecidos renascerem e vitrine para equipes desconhecidas da maioria.

Um desses times que pouca gente conhece fez história na última quinta-feira (23). Trata-se do Qarabag Futbol Klubu, fundado em 23 de julho de 1951. Ao vencerem o Dnipro, com gol do meia Muarem Muarem (sim, esse é o nome), os Atlilar tornaram-se o primeiro clube do Azerbaijão a vencerem uma partida de fase de grupos de um torneio continental. Na temporada 2012/2013, o Neftçi Baku, primeiro time azeri a alcançar os grupos da UEL, teve essa oportunidade, porém adquiriu apenas três empates (1 a 1 e 0 a 0 vs. Partizán Belgrado e 2 a 2 vs. Internazionale) e três derrotas (1 a 0 e 0 a 1 vs. Rubin Kazan e 1 a 3 vs. Internazionale) - ou seja, três pontos - no Grupo H. Passadas três rodadas da edição 2014/2015 da Europa League, a campanha do Qarabag já é melhor: uma vitória (1 a 0 vs. Dnipro), um empate (0 a 0 vs. Saint-Étienne) e uma derrota (2 a 0 vs. Internazionale), totalizando quatro pontos no Grupo F.
O histórico gol de Muarem Muarem (Foto: interaztv.com)

O triunfo na Ucrânia deixou os Horsemen na vice-liderança da chave. A líder Inter soma sete pontos, já o terceiro e quarto colocados são, respectivamente, Saint-Étienne, com três pontos, e Dnipro, com apenas um ponto. Qualquer que seja a classificação final na fase de grupos, os comandados de Gurban Gurbanov já fizeram história.

Esta foi a escalação que fez história no Estádio Olímpico de Kiev - o Dnipro está mandando seus jogos por lá porque sua cidade, Dnipropetrovsk, está inserida em território onde conflitos políticos se fazem presentes: Sehic; Garayev, Medvedev, Sadygov, Agolli; Guseynov, Yusifov, Nadirov (Tagiyev, 27' 2ºT), Muarem (Aleskerov, 45' 2ºT), Richard Almeida (Teli, 37' 2ºT); Reynaldo.
Formações de Dnipro e Qarabag, no jogo válido pela terceira rodada da fase de grupos da Uefa Europa League 2014/2015 (Foto: Reprodução/resultados.com)

O elenco do Qarabag FK é repleto de nacionalidades. Entre os 26 jogadores que integram o plantel, há 16 azeris, quatro brasileiros, dois albaneses, um suíço, um bósnio, um macedônio e um holandês. Os nossos compatriotas são os meias Richard Almeida, ex-Santo André, e Chumbinho, ex-São Paulo, Náutico, Coritiba e Ponte Preta, e os atacantes Reynaldo, ex-Náutico, e Danilo Dias, ex-Goiás, Gama e Atlético-GO.
Elenco do Qarabag FK (Foto: Reprodução/Wikipédia)

A caminhada do time sediado no Azerbaijão para chegar à fase de grupos da Liga Europa foi longa. Começou na segunda fase preliminar da Champions League - atual campeão de seu país, o Qarabag entrou nos estágios eliminatórios da UCL -, contra o Valletta FC, de Malta. Após vitórias por 1 a 0 na ida e 4 a 0 na volta, sucumbiu diante do Red Bull Salzburg, da Áustria, na fase seguinte: venceu por 2 a 1 na ida, mas foi derrotado por 2 a 0 na volta.

Por ter sido eliminado na 3ª eliminatória da Champions, foi repassado para os playoffs da UEL, último estágio antes da fase de grupos. O adversário estava longe de ser presa fácil: era o Twente, da Holanda. Os azeris não se intimidaram com a qualidade técnica dos oponentes e garantiram a inédita vaga nos grupos da Europa League após empate sem gols em casa e empate em 1 a 1 na volta. A regra do gol fora de casa pôs Gurbanov e seu elenco em caminhos jamais trilhados anteriormente.
Getty Images

Mas de qual cidade é o Qarabag? É aí que vem a história mais curiosa, e que me motivou a escrever esta postagem a qual vocês leem. Os Atlilar são da cidade de Agdam, que hoje não é ocupada por mais ninguém. Isso mesmo, uma "cidade-fantasma". Agdam é (ou era, como queiram) a capital do Rayon - uma espécie de subdivisão administrativa dos países que integraram a antiga União Soviética - homônimo.

O município, que já abrigou 160 mil habitantes, localiza-se na região do Nagorno-Karabakh - daí vem o nome do time em questão -, que pertence ao Azerbaijão e, no entanto, possui população majoritariamente armênia. O local é motivo de disputa entre azeris e armênios desde o início do Século XX - em 1918, para ser mais preciso -, quando os países se tornaram independentes do Império Russo. Em 1923, o ditador soviético Josef Stalin determinou que a região pertenceria ao Azerbaijão. Nos últimos anos da URSS, o Nagorno-Karabakh voltou a ser palco de conflitos entre cidadãos do Azerbaijão e da Armênia, e eis que surgiu a Guerra do Nagorno-Karabakh, a qual durou de 1988 a 1994.
Fotos da "cidade-fantasma" de Agdam - abaixo, a famosa mesquita do município (weburbanist.com)

Àquela época, os armênios da localidade queriam se unir à Armênia - supostamente já estavam fartos de serem minorias dentro do Azerbaijão -, entretanto os azeris da região, evidentemente, não concordaram com tal iniciativa. E a violência voltou a fazer parte da rotina dos moradores. As diferenças religiosas também motivavam o conflito: estavam envolvidos o Islamismo, crença predominante no Azerbaijão, e o Cristianismo, crença predominante na Armênia. Quando a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas se dissolveu, a Guerra do Nagorno-Karabakh já durava três anos.

Em 1993, uma ofensiva armênia tomou a cidade de Agdam, base do exército azeri. A população local se viu obrigada a deixar a cidade. Quem venceu a guerra? Foram os armênios, embora o Nagorno-Karabakh continue sendo um território do Azerbaijão. Portanto, é um estado armênio ainda não reconhecido. A guerra acabou, todavia a população não teve coragem de voltar ao seu local de origem. Resultado: o lugar continua abandonado. Devido a todos esses acontecimentos, Armênia e Azerbaijão são terminantemente proibidos de integrar os mesmos grupos nas Eliminatórias da Uefa, seja para a Copa do Mundo ou para a Eurocopa.

Depois disso tudo, onde o Qarabag Agdam vem mandando seus jogos? Antes, a casa do time era o Imarat Stadium. Durante a guerra, a praça esportiva foi bombardeada por forças militares armênias. Jogadores, comissão técnica e dirigentes se estabeleceram em Baku, capital do país, em 1993 - a atual casa dos Horsemen é o Tofiq Bahramov Stadium.. O técnico da equipe na época, Allahverdi Bagirov, não foi junto. Alistado ao Exército do Azerbaijão, preferiu lutar na guerra e morreu após seu carro passar por cima de uma mina anti-tanque. Bagirov foi condecorado com o título de Herói Nacional do Azerbaijão e tornou-se ídolo.
Allahverdi Bagirov, ex-técnico do Qarabag Agdam e ídolo da pátria azeri (Foto: interaztv.com)

Por conta desses acontecimentos, o Qarabag é um clube muito querido e respeitado em sua pátria. Enquanto a guerra rolava, o time foi campeão nacional, já tendo Baku como sua "nova casa", em 1993. Já era o suficiente para conquistar tamanha admiração por parte de seus compatriotas.

Ao longo dos anos, o clube chegou a passar por problemas financeiros. Contudo, a instituição é saudável financeiramente nos dias atuais, graças ao dinheiro vindo da empresa Azersun, controlada por empresários turcos e azeris. Na temporada 2013-2014, o time conquistou seu segundo título da primeira divisão. Antes disso, obteve duas taças da copa nacional, em 2006 e 2009, e uma da supercopa, em 1994.

Hoje, os comandados de Gurbanov se configuram como uma ideal representação do sentimento nacionalista que permeia o Azerbaijão. Gurban, inclusive, é um dos técnicos mais renomados do país e tem como estilo de jogo preferido o tiki-taka, que ganhou apelo com o espanhol Pep Guardiola, ex-técnico do Barcelona e atual técnico do Bayern de Munique.
Gurban Gurbanov comanda o Qarabag desde 2008 (Foto: Getty Images/Uefa)

No âmbito das competições europeias, além da já histórica campanha na UEL 2014/2015, os Cavalos também são o primeiro time do Azerbaijão a conquistarem uma vitória numa eliminatória europeia. O feito se deu em 1999, na antiga Copa Intertoto, contra o clube israelense Maccabi Haifa: 2 a 1 em plena Israel - no placar agregado, empate em 2 a 2 e classificação garantida graças à regra do gol fora de casa. Na fase seguinte, duas derrotas para o francês Montpellier: 3 a 0 e 6 a 0.

Antes de chegar à fase de grupos, a equipe já havia batido na trave três vezes, todas na Liga Europa: em 2009, contra o Twente (3 a 1 no placar agregado); em 2010, diante do Borussia Dortmund (5 a 0 no marcador agregado); e em 2013, frente ao Eintracht Frankfurt (4 a 1 na contagem agregada).

O Qarabag, com muita persistência, vem rompendo fronteiras, mas ainda carrega em si um sonho distante: voltar para casa.


Para mais fotos do Qarabag e das ruínas de Agdam, clique aqui

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Autor: Luís Francisco Prates

Náutico, Borussia Mönchengladbach e Benfica. Pernambucano, 20 anos, cristão e estudante de Jornalismo.
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